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12 de fevereiro de 2022
O mito da remoção segura de amálgama e a “Odontologia Biológica”

Publicação endossada pela Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica e pelo Conselho Federal de Odontologia

Há crescente divulgação e polêmica relacionadas a riscos potencialmente associados à remoção de restaurações de amálgama em uma prática odontológica autodenominada ‘biológica’ ou ‘integrativa’. Este texto tem a finalidade de trazer informações embasadas em evidência científica e análise crítica da literatura para antagonizar narrativas enganosas e tranquilizar cirurgiões-dentistas e pacientes sobre o tema.

Receios sobre contaminação e risco ambiental relacionados ao amálgama estão presentes na história da odontologia há séculos. A origem reside no fato do amálgama ser uma liga metálica que contém mercúrio, um conhecido metal pesado. Em sua forma elementar ou orgânica, o mercúrio oferece, sim, riscos à saúde e ao meio ambiente como poluente, por isso há movimento mundial para redução de seu uso por meio da Convenção de Minamata1. Nas restaurações dentárias, entretanto, o mercúrio está presente primariamente em sua forma inorgânica, que é mais segura e não foi mostrada causar doenças às pessoas. Estudos mostraram que os níveis de mercúrio liberados de restaurações são tão baixos que nem mesmo níveis muito maiores àqueles associados a uma boca cheia de restaurações de amálgama representam perigo à saúde.2

O amálgama já foi muito utilizado na odontologia, mas há anos enfrenta phase down no uso e ensino visando à sua descontinuação total em alguns anos por conta do descarte inadequado e risco de poluição. Até há poucos anos, ainda era possível que cirurgiões-dentistas manipulassem o mercúrio em sua forma líquida, o que podia causar risco ocupacional. Se a restauração de amálgama é tão perigosa para pacientes quanto as narrativas propagam, por que não há registro de intoxicação em massa de cirurgiões-dentistas que manipulavam o produto livremente? Ou documentação de milhares de pacientes com agravos de saúde comprovadamente causados pela presença de restaurações na boca? Talvez porque a literatura esteja sendo analisada de forma seletiva.

Durante a remoção de restaurações antigas, o risco de contaminação é ainda menor do que quando o mercúrio era manipulado no consultório. Estudos realizados na época em que o amálgama ainda era muito utilizado mostraram que o uso de irrigação, sugador e isolamento com dique de borracha eram suficientes para filtrar 99,5{fed22c75d7a4a33c6fbf3d1d1b90f12a0b0b583db67bd9d917745b8ba99ba320} do vapor de mercúrio gerado no procedimento e que, mesmo sem o uso de isolamento, os níveis de mercúrio liberados ao remover restaurações eram baixos.3-5

O tema é tão relevante que órgãos internacionais já se posicionaram oficialmente. Em 2020, a International Association for Dental Research publicou declaração de política e posição sobre a segurança do amálgama dental,6 embasada por estudos da Food and Drug Administration dos EUA (2019)7 e do Comitê Científico sobre Riscos Emergentes e Recém-Identificados à Saúde da União Europeia (2015)8. Estes órgãos são unânimes em afirmar que a evidência atual é insuficiente para apoiar uma associação causal entre mercúrio do amálgama dental e efeitos adversos à saúde, e que a evidência atual não sugere a necessidade de remoção preventiva de restaurações de amálgama pré-existentes.

Embora o amálgama esteja com seus dias contados na odontologia, tenha clareza que restaurações de amálgama não causam envenenamento, intoxicação ou agravos à saúde e também que restaurações não devem ser removidas em razão de riscos de contaminação. Ao remover restaurações de amálgama, instrumentais e equipamentos utilizados há décadas por cirurgiões-dentistas são suficientes e seguros para proteção de profissionais e pacientes, incluindo EPIs tradicionais, sugador e dique de borracha. Não existem estudos controlados sobre protocolos de desintoxicação, que não devem ser prescritos a pacientes. O resultado de pessoas se sentindo ‘melhor’ depois de terem restaurações de amálgama removidas não pode ser desvinculado do conhecido efeito nocebo, que ocorre quando expectativas negativas geradas por profissionais, especialmente quando mal informados, podem ocasionar efeitos adversos que não deveriam existir.

O assunto gera polêmica pela baixa capacidade de pacientes e alguns profissionais da área da saúde em interpretarem evidências científicas, além da fácil manipulação de narrativas em redes sociais. Cirurgiões-Dentistas e pacientes mal treinados em análise de evidência podem ser facilmente convencidos por histórias enganosas. Cirurgiões-Dentistas também podem ser vítimas e acreditar que estão entregando os melhores cuidados a seus pacientes. Porém alegar doenças não existentes e sugerir terapias miraculosas rende visibilidade e retorno financeiro a quem propaga ideias sem embasamento crítico. Todo cirurgião-dentista atua em processos biológicos e saúde. Cuidado com práticas de saúde que fazem uso incorreto de informações e se aproximam de charlatanismo, mesmo que inconsciente. Propagadores da ideia de que pacientes com amálgama estão envenenados são responsáveis por causar mal-estar, desconforto e ansiedade às pessoas e devem ser responsabilizados por isso. Limites precisam ser estabelecidos antes que seja tarde demais.

Texto e análise:

Rafael R. Moraes

Professor e pesquisador, Faculdade de Odontologia

Universidade Federal de Pelotas

REFERÊNCIAS

  1. United Nations Environment Programme, Minamata Convention of Mercury <https://www.mercuryconvention.org/en>. Acesso em 08/08/2022.
  2. Dodes JE. The amalgam controversy. An evidence-based analysis. J Am Dent Assoc 2001; 132:348-56.
  3. Nimmo A, Werley MS, Martin JS, Tansy MF. Particulate inhalation during the removal of amalgam restorations. J Prosthet Dent 1990; 63:228-33.
  4. Engle JH, Ferracane JL, Wichmann J, Okabe T. Quantitation of total mercury vapor released during dental procedures. Dent Mater 1992; 8:176-80.
  5. Berglund A, Molin M. Mercury levels in plasma and urine after removal of all amalgam restorations: the effect of using rubber dams. Dent Mater 1997; 13:297-304.
  6. Ajiboye AS, Mossey PA; IADR Science Information Committee, Fox CH. International Association for Dental Research policy and position statements on the safety of dental amalgam. J Dent Res 2020; 99:763-8.
  7. US Food and Drug Administration. Epidemiological evidence on the adverse health effects reported in relation to mercury from dental amalgam. Silver Spring (MD): US Department of Health and Human Services, 2019. Acesso em 08/08/2022.
  8. Scientific Committee on Emerging and Newly Identified Health Risks. The safety of dental amalgam and alternative dental restoration materials for patients and users. Brussels (Belgium): European Commission, 2015. Acesso em 08/08/2022.

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